Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Hinos e Festivais de Verão

''Eternal Father strong to save,
Whose arm hath bound the restless wave,
Who bidd'st the mighty ocean deep,
Its own appointed limits keep;
Oh, hear us when we cry to Thee,
For those in peril on the sea...''

                  -Naval hymns - Eternal Father strong to save



Um dia, num passado não muito distante, estive em Londres a passar férias. Como não tinha dinheiro, acabei por ficar no Hostel mais barato que encontrei. A casa Baden-Powell, chamada assim em homenagem ao pai do Escutismo.

Não me lembro de muito da estadia. Mas lembro-me que num domingo, depois de descer a Cromwell Road a caminho do Hostel, cansado por várias incursões em atracções turísticas, ouvi um burburinho na distância.

O som cresceu de intensidade quando me aproximei do ginásio do Hostel. Percebi que se tratava de um cântico arrastado, litúrgico. Abri a porta, e deparei-me com muitas dezenas de Ingleses a cantar uma música que não conhecia.

''Eternal Father, strong to save...''

A cena era hipnótica. Senti os pêlos dos braços a eriçarem-se, o coração a acelerar no peito, e um revolver eléctrico na barriga. Um misto de reverência e de solenidade. Aqueles minutos de um hino sincero, fizeram mais pelo meu entendimento sobre a fé católica do que vários anos de catequese.

A minha memória transformou aquele ginásio despido numa Catedral majestosa, onde o eco daquele hino histórico reverberava em paredes de mármore com centenas de ingleses de peito erguido e cabeça curvada, cantando a Deus em uníssono com os tubos colossais de um órgão cerimonial.


O objectivo da música era que Deus, na sua misericórdia infinita, ajudasse e protegesse os filhos de Inglaterra quando eles estivessem no mar. E o revolver eléctrico que eu sentia na barriga deixava poucas dúvidas que o hino devia estar a funcionar na perfeição.

É difícil encontrar músicas contemporâneas, que provoquem emoções semelhantes.
Talvez ouvir o hino nacional antes da final do europeu de futebol entre Portugal e França.


Toda a gente no café olha fixamente a televisão. Pousam as mesmas garrafas de Sagres que acabaram de aparecer no spot publicitário imediatamente antes, alguns crentes põem a mão no peito e até os pratos de lombinhos descansam uns minutos, enquanto as câmaras percorrem os rostos dos jogadores que cantam a Portuguesa. Queremos que eles sintam o revolver eléctrico na barriga, e se algum deles não canta o hino, ou parece distraído, vai ser alvo de comentários depreciativos após o estádio explodir em aplauso.

Os hinos nacionais aclamam o nosso passado comum. Comum é a palavra chave aqui. A celebração do que partilhamos, a nossa herança colectiva. Não interessa muito o que está a ser celebrado. Qualquer povo, as emoções são as mesmas.

Em sociologia, há uma teoria que defende que os nossos auto conceitos pessoais, têm uma parte em comum. A parte em que acreditamos/percepcionamos que pertencemos a um grupo social relevante, com um conjunto de características mais ou menos bem definidas.

Chama-se a teoria de identidade social. Quando cantamos hinos, estamos a celebrar a parte do nosso auto conceito que percepcionamos como tendo em comum com todos os portugueses, ou com todos os benfiquistas, ou ou hino das crianças que estão a espera do início dos desenhos animados nos os anos 90.


Esta sensação de euforia solene, é uma qualidade de algumas músicas que mais ou menos formalmente vai aparecendo em várias músicas, hinos nacionais ou músicas pop/rock.

Por exemplo, em 1982, Sylvester Stallone pediu aos Queen para usar a música ''Another one bites the dust'', como música temática no filme Rocky III. Os Queen recusaram, e Stallone pediu ao grupo Survivor, para escrever uma música para o filme. O resultado vive na nossa memória colectiva como um dos melhores hinos desportivos, ainda ouvidos em muitos ginásios, e por quem quer que se queira motivar para atingir um objectivo.


A música celebra o individualismo, o sacrifício em nome da perseguição de um objectivo pessoal, contra todas as hipóteses, contra todas as dificuldades. Uma crença cega de que somos capazes de chegar lá, de concretizarmos os nossos sonhos, de sermos o que aspiramos. Sentimos um revolver na barriga, e corremos mais depressa, vamos mais longe.

Crença cega de que somos capazes. Outra maneira de dizer fé em nós próprios. Fé. Como os ingleses, que cantavam a fé em Deus para proteger os filhos de Inglaterra no mar.

Agora, porque é que Stallone queria usar uma música dos Queen no filme Rocky III? Talvez porque em 1977, um Freddie Mercury em cuecas andava a fazer isto pelos palcos do mundo.


Uma a seguir a outra, We will rock you, e We are the champions. Músicas eternas e geniais, que tocaram no fim dos torneios de muitos desportos durante décadas.

A percussão de 'We will rock you', cria a impressão que muitas pessoas dão força à música, e isso faz sentido, se pensarmos que a música foi inspirada num momento, em Birmingham, quando a plateia cantou o hino 'You will never walk alone', em resposta ao encore que os Queen tinham acabado de fazer.

Estes hinos dos anos 70 e 80 glorificam a busca individual de objectivos, mas também a força que temos juntos, o poder das emoções humanas. No entanto, mesmo quando descrevem a busca individual de objectivos, descrevem de maneira vaga o suficiente para poder ser sentida por qualquer pessoa. Não há uma música sobre um jovem que quer ser especialista em caranguejos-violinistas. Isso é um interesse de nicho. Mas um jovem que quer ser especialista em caranguejos violinistas, pode treinar para ter o melhor 'eye of the tiger' a descortinar quelípodos.


Ou coiso.

''Isso era bonito nos anos oitenta, mas e qualquer coisa mais recente? Toda a gente sabe que a música perdeu qualidade ao longo dos anos, e que hoje somos muito mais misantrópicos.''

Sei lá...



''I'm gonna fight'em off,
A seven nation army couldn't hold me back.
They're gonna rip it off,
Taking their time right behind my back.
And I'm talkin' to myself at night because I can't forget,
Back and forth through my mind,
Behind a cigarette''

Esta música energética dos White Stripes tem a força de um hino.

Não foi por acaso que durante o festival de verão inglês Glastonbury em 2017, que hordas de jovens ingleses começaram a cantar o nome do socialista, líder da oposição, e principal adversário de Theresa May.


O quê?!? Jovens de férias em países de primeiro mundo, a interromperem concertos das suas bandas favoritas para cantar o nome de um político ao ritmo da música Seven Nation Army dos White Stripes?

Was it Opposite Day?

Aconteceu num festival de verão.

Milhares de pessoas a assistirem a música ao vivo, a cantarem em uníssono, a dançarem como se ninguém estivesse a ver. A multidão ondula ao som da música energética, aplaude em sintonia os ritmos ou levantam os isqueiros a acompanhar as músicas que os levaram a gostar da banda.

Porque será que isto:


Quase que faz lembrar isto:


O palco esta iluminado a meia luz, a banda está em transe ofuscado por cortinas de fumo, e quando a música acelera, as luzes coloridas varrem a multidão que salta. Os amigos dançam abraçados, os casais beijam-se apaixonadamente.

A noite está morna da euforia contagiante que levou milhares de jovens a deixarem as suas casas em peregrinação a das grandes cidades até à periferia.

Aproveitem os hinos e o verão. Daqui a pouco faltam 3 meses para o Inverno.

Read More »