Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

terça-feira, 23 de junho de 2015

Ontem fiz uma consulta

Ontem fiz uma consulta.

Estava a fazer a intersubstituição da tarde. Já tinha tido saúdes infantis durante a manhã toda, durante a primeira metade da tarde vi diabéticos de uma médica que está a faltar.
Por volta das 17:00 comecei a intersubstituição. Nada de especial, as coisas do costume, febres, dores de garganta, diarreia.

Olho para a sala de espera, e o próximo doente é um homem de 37 anos.
Acho isto estranho. Habitualmente os homens de entre os 30 e os 40 anos são saudáveis, não vêm à consulta. Fui ver e de facto este homem não vinha ao médico já há uns 2 anos.
Começo a pensar o que é que ele poderá ter, e não me vem nada imediatamente à cabeça.

Crianças com menos de 10 anos sei que provavelmente vêm com febre, ou dores de garganta ou diarreia; mulheres com mais de 45 vêm por dores nas costas ou nos joelhos e crises de tensão alta.
Agora, homens com 37 anos? Não me vem nada à cabeça imediatamente.

Chamo-o e ele entra pelo gabinete com uma criança de 3 anos ao colo. Fico subitamente confuso. Será que vi mal e era uma criança que estava marcada? Será que confundi 37 com 3? Não seria a primeira vez.
Mas não, ele desculpa-se dizendo que não tinha onde deixar o filho e por isso teve de o trazer.

Sentam-se os dois nas cadeiras em frente à minha secretária, e eu pergunto-lhe o que é que o trouxe hoje à consulta.
Os olhos dele enchem-se subitamente de lágrimas, leva a mão à cara para conter o choro, e consegue espremer por entre dentes "Dr, estou cheio de ansiedade".

Eu olho para ele, olho para a criança. O miúdo está assustado. Por algum motivo quando ele entrou eu tive a impressão que era o miúdo estava doente.

"Vamos pôr o seu filho a brincar lá fora com as enfermeiras para conversarmos mais à vontade" digo-lhe eu, e ele parece acalmar ligeiramnte. 

No entanto, afinal, não encontrei enfermeiras, e então vou roubar uns brinquedos ao gabinete de outra médica, e o miúdo fica distraído a brincar num canto do meu gabinete.

"Explique-me lá o que é que se está a passar" pergunto eu.

Ele volta a encher -se de lágrimas, hesita uns momentos, e deita cá para fora, num único fôlego, sem pontuação
"Estou com imensa pressão no trabalho ando cansadíssimo não tenho um fim de semana há dois meses só ontem é que consegui descansar os meus pais foram operados tenho imensa ansiedade a minha mulher está a ficar chateada comigo sinto que estou a falhar com o meu filho"

Continua a chorar para as mãos, consegue engolir as emoções, e parece que volta atrás, como se se sentisse embaraçado por ter dito em voz alta o que sentia, como se quisesse que o problema fosse outro e acrescenta "também ando a sentir umas dores nas costas, no corpo..."

"Dores em picadas?"

"Não, parecem os músculos contraídos. Doem-me quando estou deitado na cama"

"Você não anda a dormir nada pois não?"

Ele abana a cabeça, concordando.

"Passa a noite toda a rebolar, não é?"

Ele volta a concordar.

"Anda a sentir-se triste? Com acessos de choro?"

Ele concorda

"Já falou disto com a sua mulher?"

Ele diz que não, explica que ela está fora do país durante uns dias, ele está sozinho a tomar conta do filho porque os pais idosos foram operados e não o podem ajudar.

"Anda com falta de ar, com o coração a bater muito?"

Ele olha para mim, com lágrimas nos olhos, assustadissimo, perdido, a conter o pânico.

A primeira coisa que lhe digo é
"Você não está doente, não há nada de errado com o seu corpo. Você não está deprimido, não tem nenhuma patologia"
"Você está a trabalhar demais. Ouça, qualquer pessoa que passe um mês sem fins de semana começa a passar-se um bocadinho. Qualquer pessoa na sua situação ia sentir o mesmo"
"Em segundo lugar, você não está a falhar. Você está a fazer os possíveis e os impossíveis para que tudo corra bem, para cuidar da sua família, e ao que parece está a conseguir. Falhar seria não vir aqui pedir-me ajuda"

À medida que lhe explico estas coisas, a cara dele abre-se em espanto, como se nunca lhe tivesse passado pela cabeça que estas ideias pudessem sequer existir. Ele estava há tanto tempo sob ansiedade e tensão, há tanto tempo a sentir culpa, que tinha perdido completamente a perspectiva da sua situação.

"Agora, a primeira coisa que vai acontecer, é que eu vou dar-lhe baixa. Baixa de 12 dias, que é o máximo que eu lhe posso dar inicialmente, senão até lhe dava mais. Vai para casa descansar.
"Sabe aqueles planos que você andava a adiar para quando tivesse tempo? Aquele restaurante aonde queria ir quando tivesse tempo? É agora. Agora você vai fazer essas coisas, vai ao restaurante, vai divertir-se.
"Vai pegar na mulher e no filho e vão fazer um fim de semana prolongado a algum sítio, para se distraírem.

"Depois, vou-lhe dar aqui um Diazepam 5mg. Dá sono e é relaxante muscular, vai tomá-lo à noite antes de ir dormir durante uma semana. Vai tomando durante o dia, em SOS, quando começar a sentir o coração a bater mais depressa"

"Finalmente, quero que faça exercício todos os dias. Agora está bom tempo, todas as manhãs vai dar uma corrida, enquanto ainda está fresquinho, vai ver que o resto do dia lhe corre logo bem"

Enquanto eu explicava estas coisas a cara dele foi-se abrindo num sorriso, em alívio. Eu vi sair-lhe o peso desesperante dos ombros em câmara lenta.
Parecia que eu lhe tinha salvo a vida, que lhe tinha dado o Santo Graal.

Ele levantou-se, apertou-me a mão, deu a mão ao filho e foi-se embora a brincar com ele.


Eu fiquei exausto. Sem fôlego.
Poucas outras consultas na minha curta carreira tinham sido tão emocionalmente desgastantes como esta.
O que pode parecer estranho, porque nem era uma situação medicamente complicada, ou um diagnóstico difícil, e, contrariamente ao que acontece habitualmente, eu até consegui ajudar o homem.

E no entanto no fim desta consulta senti-me como se tivesse feito 50 flexões.
Estava exausto emocionalmente.

Porque empatizei com ele. 
Porque se não tivesse empatia com este homem, se calhar tinha-o medicado só com uma coisa para dormir ou tinha-o mandado fazer exames ao coração ou às costas.
Porque tenho de empatizar com os doentes, porque é a forma mais eficaz de os fazer sentirem-se melhor. 
De os curar.

Fiquei a sentir-me cansado e fragilizado durante o resto das outras 6 consultas que ainda fiz nesse dia. Acabei a consulta às 19:50, consegui apanhar um comboio para casa às 20:24, cheguei a casa um pouco antes das 21:00.


Todos os dias sinto que precisava que alguém me desse baixa. 

3 comentários:

  1. I liked this one. Acaba por ser cansativo. mas tambem recompensador. lembro me de varios casos.
    Durante muito tempo nao percebi porque e que muitas velhotas diziam que ir ao medico era como ir a um padre.
    O facto e que dizer a alguem que algo nao e culpa dele, dizer lhe que as coisas sao mesmo assim, o mundo e complicado, a vida [e dificil e as vezes e o nosso corpo começa a trair;nos...
    acho que eles ficam incredulos.
    mas o facto [e que t}em uma figura de autoridade a dizer;lhes que podem dar alguma folga a si pr[oprios, s[o por si muda alguma coisa fundamental.

    precisamos disso as vezes.

    *o meu teclado tem os acentos, os parentesis e os numeros todos trocados( >P

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Foram as duas coisas, e uma não teria funcionado sem a outra.
      Eu tinha de lhe dar a folga (e tinha o poder para isso) e tinha de lhe dar autorização para a apreciar sem culpa (e aparentemente também tinha poder para fazer isso).

      Eliminar
  2. I liked this one. Acaba por ser cansativo. mas tambem recompensador. lembro me de varios casos.
    Durante muito tempo nao percebi porque e que muitas velhotas diziam que ir ao medico era como ir a um padre.
    O facto e que dizer a alguem que algo nao e culpa dele, dizer lhe que as coisas sao mesmo assim, o mundo e complicado, a vida [e dificil e as vezes e o nosso corpo começa a trair;nos...
    acho que eles ficam incredulos.
    mas o facto [e que t}em uma figura de autoridade a dizer;lhes que podem dar alguma folga a si pr[oprios, s[o por si muda alguma coisa fundamental.

    precisamos disso as vezes.

    *o meu teclado tem os acentos, os parentesis e os numeros todos trocados( >P

    ResponderEliminar