Pataniscas Satânicas

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terça-feira, 9 de junho de 2015

2001: A Space Odyssey

Já me perguntaram, mais do que uma vez, afinal porque é que o 2001 é tão bom.
Eu fico chocado todas as vezes.
Não é óbvio? Não é imediatamente aparente que é um dos melhores filmes alguma vez feitos?

Então se é tão óbvio porque é que tenho sempre dificuldade em explicar porquê?

Porque esqueço-me que de facto o 2001 é um filme extremamente invulgar. É normal ver o filme e achar que é uma seca confusa. Foi o que eu achei da primeira vez que o vi.
O filme foge à estrutura narrativa habitual e tem poucas das pistas e características que estamos habituados a prestar atenção para julgar um filme.

Portanto vou tentar explicar porque é que o filme é tão bom.


Primeiro é preciso perceber o que era a ficção científica nos anos '60, quando o filme estreou.

Na televisão passavam o Star Trek (1966), o Lost in Space (1965) e o Thunderbirds (1965).


Basicamente, ninguém levava a Ficção Científica a sério.

E de repente vem o Stanley Kubrick, que por essa altura já era um autor e realizador conceituado, que toda a gente acharia ser superior à parvoíce de alienígenas com testas de borracha que era a ficção científica.
E o Kubrick pega no género da ficção científica, por quem ninguém dava nada, e constrói nele uma das obras-primas do cinema, que ainda hoje temos dificuldade em alcançar.

Uma pedrada no charco é uma metáfora demasiado fraquinha para o que aquilo foi.
Foi mais do que uma bomba, foi um salto quântico para uma forma de arte mais elevada (esta pode bem ser a frase mais snob que eu já escrevi na minha vida).

O 2001 não foi só uma inovação, não foi um passo em frente ou sequer uma progressão lógica do que se fazia na altura.
O 2001 foi um atalho para o melhor que se conseguia fazer em ficção cientifica sem passar por todos os passos intermédios. Esses passos intermédios foram todos os filmes que entretanto tem vindo a ser feitos.

O filme não só era muito sofisticado para o seu tempo, continua a ser muito sofisticado para o NOSSO tempo.
O que por si só explica porque é que há dificuldade em entendê-lo.

Para começar há algo a ser dito acerca da história.



Contrariamente ao que se pensa habitualmente, o filme não é uma adaptação do livro 2001: a Space Odysssey.

Na realidade o Stanley Kubrick e o Arthur C. Clarke juntaram-se e colaboraram na escrita do livro e do filme um do outro ao mesmo tempo. Na realidade a história é escrita pelos dois em conjunto, e depois um deles pegou na história e transformou-a em livro e o outro pegou nela e transformou-a em filme.

A magnitude da narrativa e o tamanho das ideias envolvidas na história é espantosa. É uma história sobre o início da inteligência nos humanos, sobre exploração espacial, inteligências artificiais, sobre vida extra-terrestre inimaginavelmente avançada e viagens inter-dimensionais.

São ideias muito complexas, com imenso pano para mangas. Qualquer uma delas seria difícil de explorar de forma precisa e interessante. E no entanto a história consegue pegar em todas esta ideias e misturá-las e concretizá-las numa narrativa que nunca é forçada ou desconexa.

Se essa narrativa fosse explicada de forma mais clássica, à custa de exposição ou diálogos, seria uma salganhada de texto denso e verborreico.
Isso tornaria o filme extremamente cerebral, exigindo imensa atenção aos diálogos.



Em vez disso a história é contada de forma extremamente minimalista, com pouquíssima exposição. O conteúdo da narrativa é suportado pelas imagens.
Há poucos diálogos, os planos de câmara e os enquadramentos são mantidos durante imenso tempo, o ritmo do filme respira lentamente, sem pressa para avançar.
O 2001 é sobretudo um filme sensorial. Os longos planos e o ritmo lento existem para nos integrar naquele mundo, para nos hipnotizar e para sentirmos o filme.

A quase ausência de diálogos permite prestar atenção a outras coisas, e se conseguirmos deixar de intelectualizar o filme e simplesmente deixar-nos levar pelo tom e beleza do filme, conseguimos ter uma experiência emocional igualmente complexa.

E o Stanley Kubrick consegue isto com um filme de ficção Científica.

E que ficção científica!




Basta dizer que o 2001 continua a ser uma das representações mais fidedignas e cientificamente correctas de exploração e tecnologia espacial.
Tanto do ponto de vista prático (não haver som no espaço, a maneira como a ausência de gravidade funciona), como do ponto de vista de futurismo (ao prever que tipo de tecnologia seria necessária) o 2001 é irrepreensível. Aparece sistematicamente em primeiro lugar em listas de filmes cientificamente correctos, à frente de filmes mais modernos como o Gravity e o Interstellar.

Na maior parte das vezes os filmes escolhem favorecer a qualidade narrativa em detrimento da precisão científica, e na maior parte das vezes essa é a decisão mais correcta.


Mas estamos a falar do Stanley Kubrick.
E o Kubrick consegue pegar numa cena de 5 minutos com uma nave espacial a alunar muito lentamente, como na realidade aconteceria, e preenche a cena com música clássica, criando uma sequência quase onírica.
E consegue pegar numa nave espacial com um anel a rodar para simular gravidade e consegue usar esse espaço dificílimo para filmar e construir sequências surreais e atmosféricas.



Isto vai de encontro ao que eu estava a dizer anteriormente acerca do 2001 ser um filme sensorial e de emoções. O Kubrick conta uma história de astronautas atrás de alienígenas traídos por uma inteligência artificial através de uma narrativa fluida, cheia de sequências musicais, coloridas quase oníricas que fazem um excelente trabalho de transmitir uma sensação emocional.
À medida que a narrativa progride, a tensão dramática, o suspense e a ameaça são aumentadas por este ambiente surreal, quase psicadélico.


O facto de que de metade do filme para a frente só há duas personagens, o Dave e o H.A.L. também é significativo.
Dave, o astronauta humano com quem o espectador se identifica, vê-se sozinho contra o H.A.L., uma inteligência artificial homicida. O isolamento de Dave, que vê os seus companheiros a serem mortos um a um e a lutar sozinho contra forças ameaçadoramente frias, cria no espectador uma sensação de insegurança e desesperança que são ecoadas pelo silêncio e aparente calma com que o conflito se desenrola.



A viagem de Dave (e do espectador) passa não só por lutar contra H.A.L. mas também aventurar-se no absoluto desconhecido do monólito, e entrar numa experiência que é simultâneamente psicadélica e aterrorizante.
A famosa sequência de quase 10 minutos de cores e luzes é o culminar de toda a experiência onírica e psicadélica que é o filme. Não esquecer que o filme estreia no pico do movimento hippie, conhecido pela utilização de substâncias alteradoras da mente.


No fim, a experiência emocional e sensitiva de medo, ameaça, insegurança, beleza, maravilhamento e até terror, é aquela que habitualmente se atribui à exploração espacial e que a maioria dos filmes de ficção científica tenta transmitir aos seus espectadores.



O 2001: A Space Odyssey consegue criar nos seus espectadores a experiência de ficção científica quase perfeita recorrendo às melhores ferramentas possíveis para criar directamente essas emoções.
Essas ferramentas são sobretudo visuais, sensoriais, atmosféricas e de ritmo, coisas muito mais emocionais do que as habituais ferramentas de escrita, diálogo e exposição da maioria dos filmes de ficção científica, que acabam por ser muito mais cerebrais.

Dessa maneira o 2001, para além de contar uma história de ficção científica extremamente complexa e com ideias enormes, consegue fazê-lo de forma a enfatizar e intensificar a experiência emocional da mesma.

E é por isso que o 2001 é um dos melhores filmes de ficção científica.

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