Pataniscas Satânicas

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terça-feira, 24 de março de 2015

Divergent

O Divergent é um filme com uma escrita perfeitamente talhada para servir um propósito. É escrita narrativa no seu expoente máximo, na medida em que o seu poder manipulativo é tanto maior porque se adequa às expectativas e gostos do seu público alvo.



Superficialmente é mais um filme de drama/acção direccionado a adolescentes, feito para competir com o Hunger Games, e nesse aspecto é um filme competente. Não me vou alongar nos aspectos artísticos do filme, porque não é disso que quero falar, mas basicamente é uma história boa, com boa cinematografia, excelente direcção de arte, uma banda sonora fantástica (Woodkid), uma boa actriz principal e um bloco de madeira como actor principal.

Mas essencialmente é um filme de propaganda Republicana/Conservadora, e é disso que quero falar.


Basicamente o mundo do Divergent é um no qual a sociedade está perfeitamente dividida em cinco facções distintas, cada uma associada a valores sociais únicos.
As pessoas de cada facção têm pouco ou nenhum contacto com as das outras, e cada criança pertence à sua facção até ser adolescente, altura em que um teste lhes diz a que facção se adequam mais, e depois podem escolher se ficam na sua facção de origem ou mudar para outra. Se mudarem, nunca mais podem ter contacto com a sua família de origem. 
Depois de escolherem, passam pelo treino e ensinos específicos dessa facção. 

Tudo isto porque houve uma guerra muito grande há muitos anos, e a sociedade teve de se aglomerar numa cidade protegida por uma vedação enorme e esta divisão social era a única maneira de manter a paz.



Há paralelismos claros com o mundo do Harry Potter, com a divisão do meio social em grupos distintos, a cerimónia de escolha do grupo, o treino e educação específico de cada facção, os almoços em mesas grandes e corridas.
Este é um aspecto importante porque da mesma maneira que a divisão de grupos no Harry Potter pretendia de alguma forma reflectir os tipos de grupos e personalidades que se encontram na escola, a divisão em facções do Divergent pretende reflectir as divisões e grupos na nossa sociedade, nomeadamente na sociedade americana. É igualmente importante porque este paralelismo com o Harry Potter facilita a compreensão rápida da estrutura do mundo de Divergent, sobretudo a uma geração que cresceu com os livros do Harry Potter.

Outro paralelismo ainda mais óbvio, sobretudo para quem o conhecer, é com o Magic: the Gathering.



Magic: the Gathering é um jogo de cartas coleccionáveis (o primeiro do seu género, aliás) inventado em 1992 e desde então  com enorme sucesso. Um dos principais factores para esse sucesso é o poder da suas ferramentas narrativas, especialmente a color pie, ou roda de cores.

A Roda de Cores é uma base filosófica de motivações, cada uma delas representada por uma cor, que permite ao Magic ter sempre conflitos internos e ao mesmo tempo manter-se coerente aí longo dos anos. A Roda de Cores é composta então por:
Vermelho: representa a impulsividade, a paixão, a raiva, a alegria, as emoções fortes, o amor e o espírito de luta.
Verde: representa o natural, a natureza, a harmonia, o deixar as coisas crescer sem interferência
Branco: representa a ordem, a estrutura, o equilíbrio, as leis e a justiça
Azul: representa o intelecto, o artificial, a manipulação, a busca por conhecimento, a frieza e a objectividade
Preto: representa o egoísmo, a liberdade individual, o sacrifício dos outros para favorecer o próprio e a busca de poder.



Comparemos com as Facções de Divergent (nas próprias palavras do filme)

Dauntless: "They're our protectors, our soldiers, our police. I always thought they were amazing. Brave, fearless and free". 
Os Dauntless correspondem ao vermelho de Magic, e representam o exército americano e o espírito militarista no geral. O treino de Dauntless que nos é mostrado no filme é exactamente um treino militar fisicamente e psicologicamente violento, e que nunca é criticado.




Amity: "farm the land. They're all about kindness and harmony, always happy"
Correspondem ao Verde de Magic, e representam as comunidades rurais americanas responsáveis pela indústria agrícola.



Candor: "value honesty and order. They tell the truth, even when you wish they wouldn't" corresponde ao Branco de Magic e representa o sistema jurídico americano, os seus tribunais e os seis juízes.



Erudite: "The smart ones, the ones who value knowledge and logic, are in Erudite. They know everything".
Corresponde ao Azul de Magic e representa os cientistas, os académicos e essencialmente os intelectuais.



Abnegation: "lead a simple life, selfless, dedicated to helping others. Because we're public servants, we're trusted to run the government" representa a família tradicional americana, aspirando a virtudes de austeridade, modéstia, solidariedade e auto-sacrificio. Não por coincidência é esta facção que corresponde ao governo.



Curiosamente esta última facção é a única que não corresponde perfeitamente a uma cor de Magic, sendo na realidade o oposto polar da cor que substitui, que é o Preto. Isto não é certamente acidental, e indica uma tentativa de aplicar uma dimensão moral sugerindo que a facção da solidariedade e auto-sacrificio é  claramente "boa".

Portanto o que é que acontece na narrativa, dadas estas facções e o que representam?

*CAUTION: HERE BE SPOILERS*

A história é de uma rapariga Abnegation numa família muito tradicional, conservadora, muito solidária. Fazem lembrar os Amish sem a componente religiosa. 

Esta rapariga não se sente bem dentro da comunidade Abnegation, porque sente presa pelas regras rígidas (é proibido olhar ao espelho durante mais do que uns segundos porque rejeitam a vaidade) e porque sente necessidade de lutar contra as injustiças que vê à sua volta.

Por causa disso quer juntar-se aos Dauntless, ou seja ao exército, mesmo que isso signifique não voltar a ver a família.

Ou seja, uma rapariga não se enquadra com a sua família tradicional porque quer lutar contra as injustiças à sua volta, então a melhor solução que encontra (porque a única alternativa permitida pela sociedade é tornar-se factionless/sem-abrigo) é juntar-se ao exército.



Entretanto os Abnegation estão a ser acusados pelos Erudite (os cientistas e intelectuais) de corrupção e de estarem a usar o seu lugar no governo para desviar fundos e comida para a sua própria facção.

A rapariga então faz um teste que lhe diz que afinal não ser enquadra em nenhuma facção e que por isso é "divergente" e isso torna-a muito especial e diferente e perigosa para a sociedade.

Apesar disso ela decide ir para o Exército, deixando pasta trás a sua família. Ela lá faz o treino militar que é particularmente violento tanto fisicamente quanto emocionalmente e que nunca é criticado, sendo apresentado como "assim é que deve ser".

Depois descobre que os Erudite (cientistas) estão a conspirar um golpe militar para depor o governo Abnegation (governo dos valores tradicionais).
Estão a fazer lavagens cerebrais aos Dauntless (exército) de maneira a controlá-los e usá-los para atacar os Abnegation.

Portanto é uma história sobre como a classe intelectual de cientistas quer atacar o governo baseado em valores tradicionais, e para isso vai manipular o exército  para o fazer.



Está perfeitamente em linha com a política anti-ciência dos movimentos políticos republicanos/conservadores americanos que são contra o ensino da evolução, negam o aquecimento global, etc, e que se esforçam imenso por desacreditar os cientistas.
É, portanto, um filme de propaganda Republicana.

Propaganda dirigida a quem? Não vale a pena pregar aos convertidos, portanto a propaganda será sempre dirigida a quem possa discordar. 

Basta olharmos para a personagem principal, com quem o público alvo é suposto identificar-se.
A personagem principal é uma personagem feminina, forte, indignada con as injustiças sociais à sua volta e que é "divergente", ou seja não se enquadra no sistema de classes sociais rígidas, pensa de maneira diferente e não se sente bem dentro da sua família tradicional de origem.
Ou seja o protótipo do jovem que à  partida estará contra os valores conservadores/republicanos. Nem vale a pena entrar a fundo nas conotações LGBT do cunho "divergente".

E o que é  que o filme diz a estes jovens revoltados, rebeliosos e que se sentem afastados dos valores republicanos?
Ora a personagem principal (com quem é suposto identificarem-se) junta-se ao exército para defender a família tradicional e o governo dos malvados dos cientistas que querem controlar toda a gente.
Ora aí está uma ideia agradavelmente republicana para os jovens impressionáveis adoptarem, imitando os seus heróis do cinema.



O mais surpreendente acerca deste filme é que é um bom filme! Como eu disse inicialmente, do ponto vista técnico e artístico o filme é até bastante bom! Para além disso a história está bem construída, tem um bom ritmo, e as ferramentas narrativas estão extremamente bem aplicadas. Eles até usam a estrutura de conflito de facções desenvolvida por Magic, garantida que tem sucesso. 

Eu gostei do filme! É divertido!

Na realidade qualquer narrativa que use bem as ferramentas narrativas certas vai ser boa. Há simplesmente combinações de elementos numa história que a tornam uma boa história! Uma personagem principal identificável e que supera dificuldades, um conflito pessoal bem integrado no mundo, vilões aparentemente invencíveis mas fundamentalmente errados. Quase não interessa qual é o conteúdo da história, desde que seja construída neste formato vai dar uma boa história.

É como um hambúrguer. Pão, carne, queijo, bacon, molhos. É impossível não se gostar. Mesmo que seja uma porcaria como o MacDonalds, desde que tenha esses elementos, 99% das pessoas vão gostar.

Portanto a genialidade deste filme é ser capaz de usar excelentes ferramentas narrativas perfeitamente adequadas ao seu público alvo de maneira a transmitir um conteúdo carregado da mensagem pró-conservadora, anti-ciência dos republicanos.

É impossível não admirar a escrita deste filme!


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