Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O Papão

Somos crianças, estamos  geneticamente programados para acreditarmos nos nossos pais. Para lhes obedecermos. Faz sentido. Todas as crianças que não acreditaram à primeira que não deviam comer as bagas vermelhas ou fazer festas ao tigre dentes-de-sabre não viveram para passar os seus genes de descrença à geração seguinte. Estamos geneticamente programados para acreditar numa autoridade superior. E porque quando desobedecemos, levamos porrada. Há isso.

Mas um dia crescemos e percebemos que os pais são humanos e falíveis. E deixamos de acreditar. Pomos em causa. O medo diminui. A autoridade dilui-se.

Então surge o Papão ele próprio, a coca, o Homem do Saco. Qualquer figura com a qual se mete medo às crianças para que estas se portem bem. A criança provavelmente nem sabia que essa figura existia até ao momento em que os pais, em tons sussurrados, apelam a uma entidade externa ameaçadora que lhes fará mal de forma indefinida, se elas não se portarem bem e obedecerem.
Eventualmente deixamos de acreditar também nesses.

O Papão precisa de evoluir, de crescer. Então cresce. O Papão passa a ser uma figura cósmica, por definição para além da compreensão humana. Uma entidade mal-definida, muito poderosa, razoavelmente omnisciente, ameaçadora, vingativa, punitiva e eternamente reprovadora.
Sabe o que se passa dentro dos pensamentos privados de cada um. Não há lugares seguros. O Papão internaliza-se. Há pessoas que não sabem viver sem o Papão a dizer-lhes o que é que não podem fazer.

Mas há pessoas que se conseguem libertar. Ou em quem o Papão não pegou. Mas o Papão perdura.

Perdura porque que queiramos quer não crescemos rodeados do Papão. O Papão integra a nossa cultura e a das pessoas à nossa volta. Respiramos e comemos o Papão a vida toda. Mesmo que não se acredite, a essência do Papão persiste. É a crença no valor do trabalho árduo e na privação do prazer,  na necessidade de ajudar sempre os outros em detrimento do próprio. O valor de aguentar o sofrimento e de se ser estóico frente às adversidades.
Quando nos sentimos culpados porque passamos o fim de semana sem fazer nada, sem nenhuma produtividade. Quando sentimos vergonha por admitir que não fizemos aquele esforço extra no trabalho. 

Isso é o Papão implantado na nossa mente, a sussurrar que temos de trabalhar mais, descansar menos.
Mas mesmo assim há pessoas que se libertam do Papão. Que conseguem ver as mentiras e manipulações do Papão e aproveitar o fim de semana. 

Mas ainda assim o Papão perdura.

Perdura em todas as outrad pessoas que acreditam no Papão. Mesmo que não saibam que acreditam. Não podemos rir muito alto, não fica bem criticar as pessoas, não devemos gozar com coisas sérias, há palavras que é feio dizer em público. É a convenção social, é o politicamente correcto, são as boas maneiras, são as regras arbitrárias. E neste Papão não é preciso acreditar, basta que todos os outros acreditem. 

E pode parecer que o podemos ignorar, pode parecer que podemos quebrar estas convenções, mas a longo prazo as consequências acumulam-se e tornam-se notórias. O sarcasmo é criticado, não é produtivo, as eminências devem ser respeitadas, por ridículas ou incoerentes que sejam.
Todos os chefes estão bem barbeados e têm crocodilos na camisa. Todas as chefes de serviço acreditam na virtude do trabalho árduo e no valor do sacrifício pessoal.

O Papão persiste nas estruturas de poder e autoridade. Onde mais poderia estar?
A vida não corre bem a quem desafia o Papão. Até podemos gozar com ele, chamar a atenção à sua existência, mas desafiá-lo é arriscado. 

Não há muito tempo o Papão queimava na fogueira quem discordava dele, ou arrancava as unhas a quem dizia coisas  desagradáveis.

É saudável ter medo do Papão.

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